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A catgirls life 🏳️‍⚧️😺

5 July 2025

O Corpo Trans

by Anne Isabelle

Dia 3 de setembro de 2022. Depois de ter passado na endócrino, ter feito os exames de sangue, colhido valores sobre minha testosterona, eu peço dois remédios na farmácia: estradiol (em comprimido, na época) e ciproterona.

A primeira semana é estranha. Sinto um certo caos emocional. Meus mamilos começam a doer um pouco. Não sinto mais vontade de me aliviar (de forma sexual). Quando sinto, percebo que algumas coisas começam a não funcionar da mesma forma que antes.

Em uma jornada de dias, semanas, meses, anos, meu corpo entra em sua segunda adolescência.

Adolescência aquela que não vivi direito. Adolescência que transformou meu corpo de modo que eu achava irreversível. Que eu não entendia. Por que eu? Por que daquele jeito? Sem controle.

Uma reação química, histérica e inútil

Uma reação química que me causou pânico por anos. Que fez com que eu não me sentisse mais frágil, mesmo sendo extremamente frágil.

Primeiro veio o bigode. Depois a voz engrossou (quando eu fazia coral). Os pelos cresceram. Barba. Tesão incontrolável.

E aí, em 2022, eu estava numa jornada pra reverter todo esse caos. Laser no rosto. Hormônios corretos. Laser no corpo. Peitos começam a crescer. Eu começo a trabalhar minha voz. Eu sou a Anne, afinal.

Porque a Anne era só uma personagem que eu queria muito ser na minha adolescência. Ela era aquela pessoa que era muito parecida comigo, mas que estava blindada das expectativas sociais que eu tinha que me sucumbir. A expectativa de ser macho. A expectativa de não chorar, de me relacionar com mulheres, de ser pegador, viril.

Hoje eu sou ela. Hoje eu me vejo como ela. Meu corpo é lindo. Eu tenho peitos, e eles são incríveis.

Eu sou a menina quirky, nerd, estranha, esquisita, misfit, interessante que eu sempre, sempre sonhei que seria. Nobody can take it away.

E hoje eu gosto da minha voz - ela é linda e eu tenho cantado muito bem. Eu sou tudo o que queria ser.


Dia 6 de julho de 2024, 7 horas da manhã. Hospital Moriah, São Paulo. Eu estava prontinha para minha primeira grande cirurgia: redesignação sexual.

Sou levada para a sala de cirurgia, explico para o anestesista que tenho medo de agulhas.

“Não se preocupe, vou aplicar uma anestesia local e você não vai sentir nada”, disse o anestesista.

Segundos depois, eu estava dormindo. Eu acordo numa sala de repouso. Me pergunto se a cirurgia deu errado. Não conseguia dizer se tinham passado segundos ou horas. Não consigo falar português, só inglês. Eu não entendo o que está acontecendo. Será que vou tomar anestesia de novo pra continuar a cirurgia? Será que vamos remarcar? O que houve??

E aí eu percebo que nada disso faz sentido. Eu não conseguia me mexer, tentava conversar com as enfermeiras mas parecia um aqueles sonhos em que eu falo e ninguém me ouve. Eu só aceitei o fato de que muito provavelmente a cirurgia tivesse dado certo. E eu começo a gritar:

I’m so happy! I’m so happy!!!

Uma enfermeira vem e percebe que acordei. Ela leva minha maca para meu quarto e vou recuperando aos poucos o movimento e a capacidade de falar português.

O cirurgião, doutor Tiago, vem ao meu quarto algumas horas depois me falar que a cirurgia foi um sucesso, sem complicações. Não sinto dor. Não posso me mexer muito, tenho um curativo enorme na região pelvical. Uma sonda urinária. É hora de descansar.


Amanhã faz um ano disso tudo. Ainda estou tentando entender meu corpo novo. Como ele funciona? O que me dá prazer? Como tratar ele direito? Depois de tudo isso, os cuidados médicos viram algo eterno. Mas eu não ligo. O importante é que eu sou eu. Do jeitinho que eu queria ser.

O dia do orgulho já passou, há poucos dias atrás. Mas eu sinto orgulho, todos os dias, do que eu me tornei.

E tenho orgulho de você, caro leitor/a/e. Eu não sei quem é você, mas se você tá lendo ainda esse texto, muito provavelmente você é alguém queer, ou alguém que se interesse nisso. Eu não sei nada sobre você, mas eu imagino que você também lute contra seus próprios demônios.

Então tenha um pouco de orgulho também por resistir.

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