Um ensaio sobre criatividade no frenesi da vida moderna
by Anne Isabelle
A infância é o período da vida em que, teoricamente, crianças devem se abster de se preocupar. Elas não tem que saber o que é pagar boletos, trabalhar, escala 6x1, capitalismo, nem nada do tipo. Elas precisam aprender a brincar, desenhar, cantar, correr, andar de bicicleta, entre outras coisas.
A coisa mais maravilhosa da minha infância foi minha criatividade e minha imaginação. Meus pais me davam muitos livros e muitas coisas que eu podia usar pra criar outras coisas. Eu assistia muitos desenhos, meu pai e meu tio sabiam desenhar e tinham muitas coisas de desenho sempre por perto. Aos 5 eu criei meus primeiros personagens, os Irmãos 8 e os Gatinhos Super S. Eles obviamente eram gatinhos desenhados por uma criança. Mas na minha imaginação eles eram tudo: talvez a maior franchise de gatinhos que o mundo já viu.
Além disso, eu era filha única. Não tinha muitos amigos e muita gente pra brincar comigo, então eu tinha irmãos imaginários. O primeiro se chamava Carl, mas acho que não me acostumei com ele. A segunda, Holly, era muito especial pra mim. Depois de tanto assistir A Mansão Foster para Amigos Imaginários, eu acreditei que se eu imaginasse forte o suficiente, ela iria aparecer. A realidade é muito triste.
Na minha pré-adolescência, e nos meus primeiros anos de internet, a minha imaginação me fez criar alguém. Uma garota estranha e curiosa que lurkava em um chat do MSN. O nome dela era… Anne.
A minha imaginação muitas vezes foi meu refúgio para lidar com a minha deterioração de saúde mental durante minha adolescência, meu possível diagnóstico de bipolaridade e de autismo que só vieram na fase adulta e até mesmo minha transição (estive no meu ovo por anos e nunca percebi).
Aos poucos, a vida foi se tornando cada vez mais intensa e difícil de lidar. Aos 17, arranjei um emprego em um e-commerce, comecei a faculdade e passava todas minhas waking hours fora de casa. Meu corpo não aguentava mais. Minha mente não aguentava mais. E ainda assim eu tentava tocar instrumentos, aprender mais sobre música, ler mais. Minhas viagens de metrô eram sempre acompanhadas de alguma música muito diferente e de artigos salvos em um Read it Later ou algum livro.
A pandemia tornou todo esse frenesi ainda pior. Os livros saem, o Twitter surge. O feed do Instagram passa a ser constante.
Eu parei de fazer as coisas que eu mais amava. Eu parei de ser criativa e imaginativa.
E, em abril de 2025, meu cérebro pifou.
Crash
Estar ciente do mundo ao seu redor é algo muito complicado. Senti muitas saudades de quando eu não entendia o mundo. De quando eu não tinha que trabalhar pra deixar alguém rico mais rico. De quando eu não tinha que me organizar politicamente. De quando a minha existência e a existência des minhes pares não estava em jogo. De quando a guerra era algo tão distante e fora do nosso controle.
Minha avó tem câncer. Eu tenho bipolaridade. Tomo coquetéis de remédios toda noite. E o que me resta é olhar pra destruição. Sem reação.
O feed do Instagram é desconfortável. Entre vídeos de ouriços e guaxinins, que poderiam controlar minha ansiedade, vejo posts transfóbicos e crianças desmembradas em Gaza. Existem artistas no meio, tentando sobreviver também, e eu aprecio a arte deles. E minhes amigues ali postando sobre suas rotinas. Tudo no mesmo lugar.
O scroll infinito me faz pedir mais. Será que serei surpreendida com uma arte muito legal, uma música nova, algum acontecimento cotidiano ou mais uma criança sofrendo por uma guerra causada por um país que nem deveria existir?
Nesse meio tempo, todos tentam me empurrar uma tecnologia nova e inovadora – IA Generativa. Ela é o futuro, e vai substituir meu trabalho em breve. Mesmo sendo péssima. Mesmo gastando rios (literalmente).
Reset
Acho que tive a pior crise depressiva da minha vida. Eu acreditei muito que estava perdendo a noção da realidade. Que eu estava finalmente desenvolvendo esquizofrenia. Que a minha lucidez estava escapando.
The world is full of noise, yeah, I hear it all the time
Eu precisava de um tempo. Do frenesi. De tudo. De pessoas. De sons. Eu queria só ouvir música. E deitar no meu sofá.
Eu deletei meu Instagram, deletei vários contatos do WhatsApp. Parei de falar com muitas pessoas. Fui aos poucos desaparecendo. A minha ideia era desaparecer aos poucos e finalmente desaparecer em carne.
Mas eu precisava me expressar. E as formas de expressão que eu conhecia já não faziam mais tanto sentido.
Em algum momento eu percebi que eu gostava muito de escrita, e que era algo que fluía muito bem comigo. Além disso, eu aprendi que eu gosto de escrita criativa e de misturar mídias diferentes. Isso me fez recriar meu Instagram e passar a usar a ferramenta de uma forma mais criativa. Passei a misturar sons com snippets de pensamentos e imagens surreais.
Eu não ligava se alguém ia entender o que eu escrevia. Eu não estava em um período de lucidez mesmo. Aquilo era mais pra mim.
Aos poucos fui melhorando. Mas a escrita continua. E a música, e a dança, e os desenhos, e as artes digitais criativas. Me dá muita alegria saber que eu já sei de algumas coisas que eu achava difíceis demais. Me deu prazer saber que sei escrever muito bem em inglês e em português. Me deu prazer saber que conheço muito de áudio e vídeo pra fazer um setup de gravação de danças incrível. Me deu prazer voltar a desenhar. Me deu prazer perceber que sei tirar fotos lindas, sei edita-las para que fiquem incríveis e sei até mesmo trabalhar com curvas RGB pra que tenham efeitos diferentes.
Aprendi a sentir tédio. E a fazer coisas que sinto vontade de fazer. Eu não me forço mais a fazer algo se eu não quero. Mas eu sempre deixo as ferramentas por perto pra quando quero fazer algo.
Me sinto mais criativa. Me sinto mais feliz.