retpolanne life in general blog

A catgirls life 🏳️‍⚧️😺

16 June 2025

A Vida Moderna de Annie – um ensaio sobre capitalismo, neurodivergência e _coping_

by Anne Macedo

Um dos meus desenhos favoritos da infância se chama A Vida Moderna de Rocko, um dos Nicktoons clássicos da Nickelodeon. O desenho era a história de um wallaby, Rocko, e seus amigos, tentando navegar um mundo bizarro dominado por uma mega-corporação. Qualquer semalhança com o mundo real é mera coincidência…

Algumas décadas depois (me sinto velha), eu sou uma adulta que já passou da metade dos seus 20 anos de idade (cada vez mais velha) e que está lidando com as dores, loucuras, frenesi e traumas de uma vida capitalista. Uma vida em que eu sou a trabalhadora e também um produto. Uma vida em que o capitalismo explora cada aspecto: minha alimentação, meu bem estar (que eu preciso ter apenas o bare minimum para ser produtiva), minha vida sexual, minha vida amorosa, minha relação com a família e amigos, as músicas que escuto e os filmes que vejo.

A ideia desse texto é tentar explicar como pessoas autistas sofrem num mundo frenético. Porém, eu não pretendo escrever esse texto com um tom de look at me, pity me, e sim como mais um grande motivo pelo qual precisamos nos organizar como classe trabalhadora – a grande diferença entre neurodivergentes e neurotípicos é como eles conseguem lidar (to cope) com a crushing force of capitalism.

Vou trazer um exemplo bem concreto disso: passei um mês presa numa tarefa em que eu precisava corrigir logs de Log4J (uma biblioteca de logs para Java). Por conta de traços autistas que tenho, como detail-mindedness, hiperfocos, interesses especiais em computação, eu acabei explorando por semanas todas as nuances da biblioteca. No final, precisei de um tempo longe do computador (semanas) para que eu pudesse perceber que a resposta estava embaixo do meu nariz, overlooked, era só eu ler a documentação do Log4J com um fresh pair of eyes.

Isso demonstra uma skill muito interessante do meu autismo – detail-mindedness e hiperfoco, por posso ficar semanas focada em uma única tarefa e entender detalhes de baixo nível daquilo.

Porém, para o mundo corporativo, isso é péssimo. Eu obviamente recebi feedbacks críticos sobre como eu deveria ter ficado menos obcecada pelo problema e resolvido ele rápido, sobre como eu devia pensar no negócio e na big picture.

Eu, sinceramente, não ligo para a big picture – detalhes são muito interessantes.

Traumas coletivos – todos estão loucos e traumatizados

Eu acredito que todos nós somos traumatizados e um pouco loucos. Seja você um mero trabalhador, que precisa se submeter a vários abusos no dia a dia, que precisa vender sua força de trabalho (por livre e expontânea pressão, sob o risco de virar uma pessoa em situação de rua), seja você um bilionário como o Elon Musk, que vive na base de Cetamina para lidar com sua depressão (no caso, não precisamos ter empatia). Todos nós temos um ou outro trauma, pessoal ou coletivo, que difere de grau e intensidade mas que está sempre presente.

Pra alguns, o 11 de setembro de 2001 foi um trauma coletivo. Para outros, o 11 de setembro de 1973, no Chile, foi outro trauma (ou o começo de um) para a população e para a democracia do país. E para nossa geração, o sofrimento em Gaza é um trauma. Podemos não estar em Gaza, mas todos vimos as fotos e os vídeos e dormimos traumatizados, pensando nas crianças Palestinas.

Pra mim, um trauma coletivo que me afeta muito é estar vivendo um início de um holocausto anti-trans mundial. Eu sou parte de um grupo marginalizado (trans e autista), viver em um mundo que me odeia é, querendo ou não, um trauma.

E, afinal, quem vai tratar a saúde mental de tanta gente? Psicólogos são pessoas que vivem também traumas, e além do mais sofrem com um sucateamento de suas profissões. Além de termos altas demandas por profissionais de saúde mental, não temos uma grande oferta desses serviços – não por falta de capacitação, mas por falta de verba.

Seria isso por coincidência? Acredito que não. Como mencionei antes, pessoas neurotípicas tem uma capacidade enorme de coping – elas conseguem, muitas vezes, acordar todos os dias e viver suas vidas como Sísifo rolava sua pedra. Mas e pessoas neuroatípicas? Autistas, esquizofrênicos, artistas? Esses podem morrer de fome, esses podem ser largados em manicômios. Como sabemos pela história (descoberta recentemente) de Hans Asperger, autistas precisavam de eutanásia.

Pensar nisso pode ser cruel, mas deixamos mesmo de viver isso? Estamos vivendo uma volta do fascismo e do nazismo, digital e em massa. Além disso, pessoas neurodivergentes são as que mais morrem por suicídio. Eugenia e higienismo é algo que existe no capitalismo e sempre vai existir enquanto o capitalismo existir.

Vender sua força de trabalho como uma camgirl vende sua intimidade

Confucius tem uma frase clássica (que li no muro de uma escola quando criança), “trabalhe com o que goste e nunca terá que trabalhar um dia de sua vida” ou algum bullshit assim. Confucius, o confuso, não imaginava que viveriamos um mundo em que nosso prazer seria cada vez mais explorado até nos sentirmos esgotados, até sentirmos uma estranha anedonia que vai nos fazer questionar se temos alguma patologia.

Eu sempre amei computadores. Minha memória mais antiga é a de um computador com Windows Me ligando (o pior Windows de todos). Eu tinha hiperfoco no Windows (mais especificamente em telas de boot) quando criança e, eventualmente, aprendi que eu poderia rodar várias versões do Windows usando máquinas virtuais. Quando adolescente, hiperfoquei nos vídeos de boas vindas do Macintosh e tentei fazer Hackintosh por anos. Enfim, com tudo isso eu aprendi muito sobre sistemas operacionais e computação de baixo nível, além de arquiteturas (e microarquiteturas). Eu sou ainda apaixonada por UNIX e Linux e teoria de sistemas operacionais.

Por sorte, consegui um emprego como desenvolvedora aos 17, que me abriu um caminho corporativo para chegar em infraestrutura, onde finalmente me encontrei. Era algo que eu fazia todo dia e tinha certo prazer. Mas será?

Claro, fazer coisas que gosta e que tem muita habilidade em fazer é muito bom, mas ainda assim precisava me submeter a coisas estranhas – entender o negócio, passar por momentos de enorme pressão, conversar com pessoas que não sabiam o que estavam fazendo, e recentemente ver a máscara da minha área caindo – não trabalhamos em startups animadas, fofas, descoladas, e sim pra manter o status quo capitalista, em que um bilionário fica cada vez mais rico numa masturbação eterna de números e especulação. Somos trabalhadores, por mais que trabalhemos em escritórios fofos com comida de graça ou no conforto de nossas casas.

Estamos vendendo nossa força de trabalho quando estamos pensando no dilema de trabalhar para uma empresa que endivida famílias no Brasil ou que ataca crianças em Gaza, ou será que vivemos uma relação abusíva com nossa realidade?

Penso nas trabalhadoras sexuais. Como uma pessoa trans, eu sou uma pessoa que naturalmente vive a sexualização da minha existência e o male gaze. Quantas mulheres trans realmente conseguem ter empregos como o meu? O Brasil é um dos países que mais mata pessoas trans, mas também o que mais consome pornografia trans.

Não tenho intenção de moralizar o discurso – trabalhadoras sexuais estão tentando sobreviver de alguma forma num sistema que nos torna doentes. Erotismo é interessante como forma de arte, mas o que vivemos é mais uma das explorações capitalistas do corpo. Trago uma reflexão – trabalhadoras sexuais escolhem vender sua intimidade? Alguns podem dizer que sim, mas eu acredito que mesmo as que pensam que estão só “vendendo” na verdade não tiveram muitas opções.

Assim como as trabalhadoras sexuais, nós que trabalhamos em trabalhos que são vistos pela sociedade como algo mais “digno” não temos muita escolha – precisamos pegar tudo aquilo em que somos bons e explorar até que não seja mais prazeroso.

E se você é bom em arte, música, escrita, até mesmo erotismo, coisas que mexem com o status quo – aí, meu querido, você infelizmente vai morrer de fome. Escolha outra profissão. (isso foi sarcástico, não desista!)

E, no final do dia, você precisa consumir porcarias do Netflix. Você precisa jogar videogames. Você precisa ler aquele livro que não vai se ler sozinho. Você precisa praticar esportes, ir na academia, “o de hoje tá pago”, postar nas redes sociais, doomscroll, tigrinho, bet, brainrot.

Vivemos esse eterno loop de receber estímulos e mais estímulos e termos que nos sentir produtivos ao máximo, mesmo quando descansamos. To fill the void with static.

Autismo e a habilidade de coping

A grande questão da neurodivergência é justamente a habilidade de coping, lidar com uma realidade dolorosa feita para produtividade. Não, pessoas neurotípicas não são pessoas “normais” – eu já expliquei sobre traumas sociais, coletivos e individuais. Todo mundo lida com coisas que as vezes são muito parecidas. A classe trabalhadora lida com o trauma coletivo de acordar todo dia e pegar metrô lotado, trabalhar 8h por dia e voltar pra casa no metrô lotado, sem perspectiva de melhora.

Porém, pessoas neurotípicas tem uma capacidade melhor de não questionar e se conformar. Isso não quer dizer que todo neurotípico é conformista, mas pelo menos eles conseguem ignorar as nuances de comportamento cerebral pra continuar sendo produtivos e não adoecer tão facilmente.

Pessoas como eu, autistas, tem dificuldades pra lidar com esse mundo. Não por serem “naturalmente questionadoras”, mas por funcionarem de formas não produtivas – eu passei semanas focada numa tarefa que eu deveria não ter focado tanto, pois isso é “ruim para o negócio”. Mas além de respeitar as nuances do meu cérebro, eu entendo minha própria rigidez cognitiva. Ou seja, não vou mudar porque o capitalismo quer que eu mude. Ele que morra.

Durante um tempo, fiquei pensando na frase “eu não posso pedir para o mundo parar pra mim”. O final desse texto vai ter uma mensagem um pouco otimista sobre tudo isso, mas também senti muitas vezes uma sensação de derrota.

Passei um tempo refletindo sobre a vida moderna. Como eu posso morar sozinha, trabalhar, pagar meu aluguel, manter minha louça, roupas e casa limpas, ter vida social, ter pequenos luxos, transar e sentir prazer, apreciar (e não só consumir) arte sem que eu me sinta mal ou sobrecarregada? Minha psicóloga tem me falado sobre como talvez eu precise de mais apoio, mas como fazer isso num mundo cada vez mais difícil, em que toda minha rede de apoio está adoecida?

Bora se organizar

Não quero desencorajar ninguém com isso, mas espero que, com esse texto, pessoas possam pensar em como sentir a raiva que deixaram de sentir há muito tempo – e canalizar essa raiva.

Como eu menciono em algum lugar desse texto, o grande problema de pessoas autistas é justamente a sua inabilidade de coping – de conseguir lidar com tudo o que tá acontecendo, pois nosso cérebro costuma ser mais sensível, funcionar de formas imprevisíveis, que não são compatíveis com o mundo capitalista frenético. Outras pessoas tem uma habilidade enorme de passar por todo esse abuso capitalista exploratório sem reclamar.

Acredito que muitas dessas pessoas que vemos todos os dias no metrô podem ter perdido a habilidade de imaginar um mundo melhor. Como pensar numa melhora se muitos passam horas e horas se deslocando por São Paulo? Como pensar numa melhora se a mão invisível do mercado nos dá um tapa na cara todos os dias?

Eu tenho me radicalizado há alguns anos. A pandemia foi um turning point em que ficou muito nítido quem era o culpado pelas coisas que vivemos.

Por ser autista, eu acho muito complicado muitas vezes contribuir com atos. Geralmente os atos que acontecem em SP são pacíficos, mas ainda assim tenho receio de lugares com muita gente, polícia e barulho.

Uma coisa que já percebi é que movimentos como o VAT (Vida Além do Trabalho) fez um ato num shopping center perto da minha casa, com muito apoio popular. Um mea culpa das organizações é que muitas concentram seus atos no centro da cidade, longe da periferia, e atos como esse foram importantes pra trazer as massas para o debate.

Tenho também tentado participar de grupos políticos voltados pra minha ideologia política (que não vou escrever aqui porque vai que, né), mas é super importante entender o que está acontecendo e quais métodos podem ser usados pra, eventualmente, derrotarmos o fascismo e o próprio capitalismo.

Acordem, sheeple

tags: