Autismo em technicolor
by Anne Isabelle
Eu vivi minha vida inteira como autista, mesmo antes de ser diagnosticada. Pois todos sabemos que o autismo é de nascença: você não pega autismo, vacinas não causam autismo, telas não causam autismo. Mas eu sempre fui uma pessoa meio quirky, desde criança. Porém, eu mascarei por muito tempo e percebo que ainda mascaro alguns aspectos do meu autismo até hoje (apesar de aceitar muito melhor e de pedir adaptações sempre que possível).
A inspiração desse post foi o livro Unmasking Autism, do Dr. Devon Price, PhD. Eu estou amando o livro pois ele leva em consideração aspectos relacionados à comunidades marginalizadas, como pessoas pretas e queer.
Criança
Eu era uma criança já muito quirky. Pelo que me lembro, eu chorava muito, me sentia muito melancólica (tal qual o Charlie Brown do Peanuts), e era uma criança muito sensível em vários aspectos. Geralmente os homens da minha família me falavam que chorar era coisa de boiola, ou de Mariquinha.
Além disso, eu tinha muitas sensibilidades sensoriais. Me lembro de chorar porque a manga da minha blusa ficava molhada, ou porque a etiqueta me machucava. Barulhos de aviões e de fogos de artifício eram difíceis de lidar (especialmente fogos, que eram soltos no meu aniversário, pois nasci no dia 1/1). Eu tinha um medo extremo de chuva, que me faziam ter meltdowns sempre. Um medo paranóico de morrer, de ser sequestrada ou de ser raptada. Me lembro de ter tanto medo de barras de cores SMPTE com sons de 1khz que tocavam no início de fitas VHS que meu pai precisava retirar o sinal de áudio do aparelho sempre que eu fosse assistir algo (hoje, áudio e vídeo são hiperfocos meus).
Além disso, quando pequena, eu era obcecada por logotipos de estúdios de cinema, como o da Warner e o da 20th Century Fox (até hoje tenho um pouco de hiperfoco). Alguns sons específicos me deixavam fissurada, e eu até hoje tenho muita ecolalia.
Na escola, eu costumava ser quieta e um pouco daydreamy. Eu ia muito bem em linguagens, especialmente em inglês. Eu adorava estudar inglês, procurar conteúdo em inglês na internet (geralmente relacionado a logos ou a Nickelodeon). Acredito que isso me fez desenvolver um inglês fluente.
Me lembro de uma vez, aos 7, em que percebi que, a cada ano, meus “interesses especiais” mudavam. Me lembro de alguns deles:
- Carros (especialmente os da FIAT);
- Gatos (eu desenhava gatinhos no caderno, meu pai uma vez me falou que se eu sofresse bullying por isso não era pra eu ficar chorando…);
- Logotipos;
- A turma do Charlie Brown;
- Microsoft Windows (algo que me fez aprender sobre computação e virtualização);
- Mac OS X (algo que me fez aprender sobre kernels e teoria de sistemas operacionais);
- Sonic (o clássico hiperfoco);
- My Little Pony;
- Simpsons;
- Invasor Zim;
- Serial Experiments Lain;
- Música e sons;
- Skate;
- Canais de TV, como Nickelodeon e Disney.
- Autismo, em si, já foi um hiperfoco meu!
Eu sempre tive dificuldade com coordenação motora e acabei sendo a café-com-leite ou a bobinha da maioria das brincadeiras e dos jogos de futebol ou da Educação Física. Eu geralmente jogava vôlei com as meninas, pois elas eram menos competitivas. Sempre tive medo de me machucar. Costumava ter uma pessoa favorita que me aturava até finalmente se esgotar.
Adolescência
Eventualmente a puberdade chega e a disforia de gênero começa a me machucar, sem eu saber o que está acontecendo comigo. Começo a ficar mais tímida, mais deprimida, mais reclusa e a usar mais an internet. Em um dos posts anteriores eu comento sobre como meu gênero e sexualidade começam a se revelar aí. Passo a gostar de Lady Gaga, of Montreal e outras coisas que parecem mais queer, meio que sem saber. Mas sempre me dá medo que os outros meninos me percebam como queer.
No ensino médio, minha depressão começa a ficar pior, meu corpo começa a ficar incontrolável, eu começo a ficar extremamente awkward e tudo o que é esperado de alguém nessa idade chega em momentos diferentes pra mim. Meu corpo se torna bem masculino, mas eu ainda sou sensível quando não estou em público. Começo a ter anger issues, minha hipersensibilidade fica pior.
Aos 15, eu hiperfoquei em Síndrome de Asperger (era como ainda era chamado o diagnóstico por volta de 2014). Comecei a entrar em comunidades e me identificar como autista. Porém, por mais que eu falasse pros meus pais, eles acreditavam que eu só era tímida. Não parecia vir à cabeça que eu fosse autista.
Adultescência
Aos 17, eu passei na FATEC e arranjei meu primeiro emprego, tudo ao mesmo tempo. Tudo isso foi um desafio enorme. Conhecer gente nova era incrivelmente difícil, e eu tinha passado muito tempo em casa. Além disso, ainda estava me recuperando da minha agorafobia. Eu tinha que sair de casa às 6h30, pegar o metrô lotado, ir para o escritório, voltar pra minha região no horário de pico e ir correndo para a faculdade pra ver gente diferente. Lembrar disso até me dá dor de barriga…
Pra piorar, nos primeiros meses aconteceu uma das piores panes do metrô de São Paulo, o que me causou um certo trauma.
Além disso, minha depressão chegou a níveis alarmantes, em que eu me sentia muito sozinha, desmotivada e suicida.
Passei com uma psicóloga, mas ela ignorava quando eu falava de autismo, até que ela finalmente me falou que eu não era autista pois “tinha amigos”. Em toda consulta eu saía com vontade de me jogar na frente do trem…
Pandemia
Tentei morar sozinha pouco antes da pandemia, mas foi complicado e tive medo de não conseguir lidar comigo mesma sozinha na pandemia, então voltei para a casa dos meus pais.
Comecei a ter crises de ansiedade e de misofonia (irritação extrema com sons). Decidi passar com uma psicóloga que me indicou um exame neuropsicológico (extremamente caro) para autismo… e eu fui diagnosticada finalmente.
No começo, eu tinha um pouco de vergonha de falar abertamente que eu sou autista, mas com o tempo fui tendo menos vergonha disso.
Pós transição
Hoje tenho muito orgulho de vestir minha identidade autista, de tentar desmascarar e de falar dos meus hiperfocos, ou de não me forçar a manter contato visual, ou de pedir acomodações e ajuda. Houve um tempo nesse ano em que eu percebi que meu nível de suporte poderia ser maior do que eu imaginava, pois preciso de mais ajuda do que parece. Percebi que preciso de mais acomodações, e que as pessoas prestem mais atenção nas minhas necessidades.
Decidi revelar mais sobre meus hiperfocos e sobre meu autismo, e ser mais visivelmente autista, especialmente agora que transicionei e me sinto verdadeiramente bonita sendo quirky e exquisite (eu amo essa palavra pois, apesar de parecer esquisita, ela não tem o mesmo significado). Muitas pessoas que interagem comigo percebem que falo das minhas paixões e meus interesses com brilho nos olhos, mesmo não olhando nos olhos.
Eu agora entendo e respeito meus limites, e percebo quando alguém não está levando em consideração minha neurodivergência (apesar de ainda estar aprendendo a lidar com isso).
Enfim. Me sinto feliz por ser autista. Me sinto feliz sendo eu, e quero ser aceita do jeito que sou :)
Ciao.
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